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Parque Nacional da Serra das Confusões - PI

De tão incrível que foi, deixei o relato para mais tarde, queria fazê-lo de modo caprichado, único, não queria esquecer nenhum detalhe, mas os anos se passaram e ele nunca foi escrito. Agora a memória é falha, e as escassas fotos pouco ajudam, mas uma hora é preciso escrever, mesmo que infelizmente muito se tenha perdido da lembrança da caminhada. 

   
Verão de 2006, eu e Alex decidimos fazer uma trip diferente, atravessamos e sertão do Piauí até alcançar os Lençóis Maranhenses. Uma das paradas foi justamente o Parque Nacional Serra das Confusões. Quando dormimos na cerâmica da Serra da Capivara, a mulher havia nos indicado, segundo ela, o único guia que fazia o parque das Confusões, Waltércio era o nome dele. Contato feito, arrumamos uma carona para Caracol na caminhonete do próprio IBAMA e, lá na cidade, contratamos o transporte que iria nos deixar no parque e nos buscar 2 dias depois. Ficamos 3 dias e duas noites (acampando) no parque.

Dia 01 - No primeiro dia saímos de Caracol e fomos até a comunidade de Guaribas que fica dentro do parque. A estrada é surreal, aberta por picaretas no meio das rochas. Fomos de jeep porque carro normal não chega. No meio do caminho pedimos para parar um pouco, visual impressionante, fotos. Atravessamos a comunidade pela estrada de areia e poeira fomos até o início de uma trilha que chegava até um olho d´água. O transporte nos deixou, não dava mais para continuar, nem 4X4. Combinamos de nos encontrar ali mesmo 2 dias depois. Partimos, então, eu, Alex, Waltércio e um galão com 18 litros d'água para um rolê inesquecível. Andamos até um sítio abandonado dominado pela caatinga. Montamos as barracas no terreiro. Dezenas de escorpiões. Tipo que nem barata, você espera um pouco e surge algum. Milhares de insetos, abelhas mutantes gigantes. Muito marimbondo também. Achamos o olho d'água. Difícil era ter a coragem de beber dele. Nesta primeira tarde exploramos brevemente a parte de baixo, não subimos nos morros, fomos dormir cedo. Ainda me lembro do céu forrado de estrelas e o horizonte sem luz elétrica, completa escuridão.

Dia 02 - Acordamos com os insetos batendo nas laterais da barraca, parecia um alvo, tipo um aeroporto, barulho ensurdecedor. Logo Waltércio aparece com um morcego que estava sendo atacado por um gavião. Café da manhã e partimos para a caminhada. Nos embrenhamos em várias trilhas e picadas por ali. Show de bola, tudo muito diferente. Pinturas rupestres, caatinga, muita fauna também. Me agachei para tirar uma foto e quando vou apoiar a mão vejo algo estranho na serrapilheira. Uma jibóia! Viro para meus colegas e falo: tem uma jibóia aqui. Eles prontamente riem e duvidam. Mostro o local e logo ela sai do esconderijo. Fiquei um pouco preocupado quando Waltércio tentou pegá-la, ele dizia que era professor de biologia e que taxidermizava animais. Logo ele desistiu da brincadeira. Disse que, quando voltássemos, seria melhor nem comentarmos porque o pessoal era tão pobre na comunidade que eles iriam caçá-la para comer. De fato a comunidade Guaribas é paupérrima, tipo IDH africano mesmo. O Alex lembrou que ali foi o início do programa fome zero. Já tínhamos visitado algumas comunidades carentes e acampamentos sem terra quando éramos colegas na facu de geografia, mas ali o buraco era mais embaixo. Já naquela época viviam de esmola do governo, plantavam mamona, tentavam né. O clima, o solo e a água não contribuíam muito.

Subimos os morros, baita visu lindo! Sol rachando, claro. Andamos um pouco explorando as vertentes e descansamos num abrigo de pedra. De repente o show começou. Surgem duas águias chilenas e começam a fazer um verdadeiro balé para nós. Deveriam estar curiosas com nossa presença. Lindas, lindas. São enormes! Nunca tinha visto uma ave de rapina tão grande, apenas a harpia no zoológico. Inesquecível. Ficamos um bom tempo brisando no visual e, quando o sol castigava muito, nos escondíamos em algumas tocas por ali. À noite mais um show de céu estrelado e escorpiões pelo chão.

Dia 03 - Acordamos bem cedo, 06:00hs e já tínhamos acampamento desmontado, barriga cheia de mingau de aveia e pé na trilha para encontrar nosso transporte de resgate. Daí começou o problema. O Waltércio procurou fazer outro caminho para alcançar o ponto de encontro, mas as antigas picadas de animais (gado) acabaram por confundir (trocadilho hein) a navegação. Resultado: horas de trilha em meio à juremas afiadas que dilaceravam roupas, mochilas, braços e pernas. Entendi, literalmente na pele, porque o sertanejo usa roupa de couro. O negócio parece anzol, engancha/fisga. Isso sem falar do sol do Piaui na cabeça. Depois de um tempo encontramos outro olho d'água e o caminho para a estrada. 

Já na estrada de areia fofa, rumando em direção ao transporte encontramos o próprio resgate. Sorte? não, o pneu tinha furado! Simples, trocamos o pneu e adivinha: o estepe também estava furado! Sem problemas, tinha silver tape na mochila, fizemos um mega remendo e agora era só encher, mas como? Eles simplesmente tiraram um botijão de gás de cozinha de debaixo do capô!!! O jipe era movido à gás de cozinha!!! Enchemos o pneu, o jipe andou alguns metros e: esvaziou o pneu de novo. Mais uma tentativa, agora íamos a pé, no jipe só as mochilas e o motorista. Esvaziou de novo. Melhor parar de usar o gás do botijão, pois não iria ter combustível para voltar!!! Qual a solução? Retiramos a câmara de dentro do pneu e enchemos com folhas e arbustos!!! Surreal!!! Se não tivesse fotos nem eu acreditaria. Fato é que não conseguimos resolver o problema. Alcançamos um sítio, agora a pé, e o morador, paupérrimo mas riquíssimo de coração, ainda tentou com remendo de bicicleta resolver o impasse, mas sem chances. Detalhe, que me lembro bem, foi ele oferecendo café no único copo que tinha em sua casa. Marcou minha vida este fato. Não resolveu nosso problema mas agradeço a tentativa e hospitalidade. 

Seguimos até o centro do povoado. Um motoqueiro ofereceu, ao dono do jipe, carona até a cidade. Ficamos ali na escola batendo papo com o pessoal da comunidade de lá, estavam curiosos conosco. Já estava escuro quando voltaram com as duas câmaras consertadas. Trouxeram coca-cola gelada, nem tomei, dividi com a criançada. Agradecemos e partimos de volta para Caracol. Jipe veio à milhão na estradinha escura. Nos deixaram numa pousadinha e ainda queriam uma grana extra pelos imprevistos. Ignoramos e pagamos o inicialmente combinado. Estava rolando um velório e a cidade toda acordada, acidente de carro. Eram 3:30 da manhã quando entrei no quarto, quase 24 horas acordados e na tensão, apelidamos de "dia que não terminou". Logo o sol surgiu e pegamos o bumba de volta para São Raimundo Nonato.






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